O Brasil lê mal
"Nossa incapacidade de
decifrar um texto escrito não se deve à pobreza, mas a um erro sistêmico.
Estamos ensinando sistematicamente errado"
Afirmei nesta coluna que os cursos E (no
Provão) podiam trazer grandes benefícios aos alunos. Alguns médicos enviaram
e-mails protestando: como? Ser tratado por um médico formado em escola E? Ora,
a coluna excluía taxativamente a medicina, ao dizer: "Na área médica ou em
outras em que há questões de segurança envolvidas, que se exijam mínimos
invioláveis". Um punhadinho de doutos médicos não soube ler o texto. Se
até na carreira mais elitizada de todas parece haver uma patologia no ato de
ler, imagine-se no resto. Para diagnosticar tal enfermidade, o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep/MEC) buscou uma clínica de
luxo, o Pisa. Trata-se de um sistema de testes de rendimento escolar organizado
sob a bandeira dos países membros da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos ricos. A iniciativa trouxe resultados
de incalculável valia.
Ao contrário dos testes
convencionais, não se trata de professores decidindo o que os alunos devem
saber. Os organizadores foram ao mundo real das sociedades modernas e
perguntaram que conhecimentos linguísticos seriam necessários para operar com
êxito nas empresas e na vida. Portanto, os testes buscaram a competência em
leitura que se usa no mundo real – é o que migra da escola para a prática.
Como o único outro país do
Terceiro Mundo era o México, a dúvida era se seríamos os últimos ou os
penúltimos. Melhor não podíamos esperar. Mas saber que carregamos a lanterninha
é de interesse menor.
Foram prejudicados os países
onde há muitos alunos com defasagem idade-série, como o Brasil, pois o teste
toma alunos de 15 anos (na série em que estejam). Analisando apenas os
estudantes sem atraso, nossos escores empatam com os da Rússia. Resultado
horripilante para a Rússia, que já teve um dos melhores sistemas educativos do
mundo.
Mas isso tudo é irrelevante. O
que interessa saber é por que não aprendemos a ler corretamente. O Pisa mostra
que os alunos brasileiros conseguem decifrar o texto e ter uma ideia geral
sobre o que ele está dizendo. Daí para a frente, empacam.
Isso não seria uma grande
surpresa, diante da realidade das nossas escolas públicas, ainda esmagadas por
problemas angustiantes no seu funcionamento básico. Mas poderíamos esperar que
nossas escolas de elite fizessem uma bela apresentação. Afinal, operam com os
melhores professores, os melhores alunos e sem problemas econômicos prementes.
Contudo, o nível de leitura de
nossas elites é, ao mesmo tempo, o resultado mais trágico e o que mais
esperanças traz. Saímo-nos mal, muito mal. A proporção de brasileiros de elite
capazes de compreensão perfeita dos textos escritos é muito pequena, comparada
com a taxa de outros países (1%, em vez dos 6% da Coréia e dos 13% dos EUA).
Ou seja, nossa incapacidade de
decifrar um texto escrito não se deve à pobreza, mas a um erro sistêmico.
Estamos ensinando sistematicamente errado. Se é assim, passar a ensinar certo
deve trazer incontáveis benefícios para a educação e para a sociedade. E não
pode ser tão difícil assim.
Parece haver uma estratégia
errada no ensino da leitura. Os alunos se contentam com uma compreensão
superficial do texto. Satisfeitos, passam a divagar sobre o que pensam, sobre o
que o autor poderia estar pensando, sobre o que evoca o texto. Mas isso tudo
ocorre, antes de acabarem de processar cognitivamente o texto, de decifrá-lo
segundo os códigos rígidos da sintaxe. Dispara a imaginação, trava-se a
cognição. Lemos como poetas e não como cientistas. Mas antes da hora de ler
poesia, após o jantar, há que ler contratos, cartas comerciais, bulas de
remédio, instruções de serviço, manuais, análises da sociedade e dos políticos
e por aí afora.
A revolução possível na
competência em leitura de nossa gente nos permitiria galgar outro patamar de
desenvolvimento. E isso pode ser feito a custo praticamente nulo. É só querer.
Na Europa, o Pisa provoca um feroz debate. Nas terras tupiniquins, só a notícia
do último lugar conseguiu chegar à imprensa. A tônica foi criticar o governo,
em vez de entender ou tirar lições.
Claudio de Moura Castro é
economista (claudiomc@attglobal.net)
Artigo publicado na revista
Veja edição 1741 - Ponto de Vista
Nenhum comentário:
Postar um comentário